Email sedfcontato@gmail.com
Telefone (61) 3273 0307

Inserção do DIU por Enfemeiros: um debate sobre a ampliação do acesso aos métodos contraceptivos no SUS

Publicada em 3 de abril de 2023

Por Jorge Henrique e Nayara Jéssica

Em 2017, uma decisão liminar da Justiça Federal suspendeu, de forma parcial e temporariamente, a Portaria do Ministério da Saúde (MS) n° 2488 de 2011, após ação movida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). A Portaria do MS – atualmente Portaria 2436 de 2017 – define a Política Nacional de Atenção Básica e estabelece a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Através desse dispositivo, é possível a solicitação de exames de rotina e complementares por Enfermeiros em programas de Saúde definidos pelo MS.

Com frequência, episódios como este reacendem o debate sobre a Lei Federal n° 12.842/2013, intitulada Ato Médico, que regulamenta o exercício da profissão médica no Brasil. Em 2020, por exemplo, a Secretaria de Saúde do DF (SES DF) revogou, após ações judiciais e pressão das entidades de classe médicas do DF, a Portaria 33/ 2020, que normatizava a prescrição de medicamentos e a solicitação de exames pelo Enfermeiro, em todos os níveis de assistência, conforme protocolos, guias, notas técnicas ou manuais da própria SES, com o intuito de ampliar o acesso aos serviços de saúde à população.

A prescrição de medicamentos não é um ato médico, considerando a Lei 12.842 de 2013. A prescrição pode ser realizada por outros profissionais capacitados para tal ação. A Lei 7.498/86, que regulamenta o exercício da Enfermagem, por exemplo, normatiza a prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde. No DF, a prescrição de medicamentos e a solicitação de exames pelo Enfermeiro que atua nos Programas de Saúde Pública conforme protocolos e rotinas adotadas pela SES-DF, são normatizados pela Portaria nº 218, de 2012.

A prescrição de medicamentos por Enfermeiros não acontece só no Brasil. É uma tendência Mundial. Em países como os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Inglaterra, Irlanda, Suécia, Nova Zelândia, África do Sul, França, Argentina e Espanha, os Enfermeiros estão legalmente autorizados a prescrever medicamentos. Há mais de 10 anos o Brasil vem seguindo essa tendência, mas ainda com muitos desafios a serem superados.

Recentemente, o Conselho Regional de Medicina do DF vem investindo em peças publicitárias sobre o Ato Médico. São diversas publicações, em suas mídias sociais, com o intuito de delimitar política e juridicamente, junto à sociedade, quais são as atividades privativas do profissional médico. Em uma destas postagens, o CRM DF afirmou que a realização de exames citopatológicos e seus respectivos laudos podem ser feitos apenas por médicos.

Acontece que, de acordo com a Lei 7.498/86 e a Resolução Cofen 381/2011, é prerrogativa do Enfermeiro a realização de exames e coletas citopatológicas, pelo método Papanicolau. Além disso, o procedimento está descrito em protocolo específico da Secretaria de Saúde do DF, devendo o Enfermeiro realizar a coleta quando tiver indicação clínica. Em termos práticos, quem assume a assistência em relação à realização da coleta citopatológica, na Atenção Primária à Saúde (APS), é o Enfermeiro.

Em outra ocasião, o CRM-DF divulgou que ganhou ação na Justiça, a qual determinava que inserção de Dispositivo Intrauterino (DIU) é ato privativo médico. Trata-se de ação civil pública que busca provimento judicial para determinar que o Conselho Regional de Enfermagem (COREN) divulgue a todos os enfermeiros de que não é permitido que enfermeiros realizem esse procedimento médico, sob pena de aplicação de multa diária em caso de descumprimento.

A decisão, em caráter liminar, baseava-se, inicialmente, no Art. 4º, inciso III da Lei nº 12.842/ 2013, que dispõe sobre as atividades privativas do médico em procedimentos invasivos. Outrossim, conclui que o órgão máximo da administração direta da saúde pública alterou seu posicionamento em 2021, por meio da Nota Técnica Nº 21/ 2021, revogando a Nota Técnica nº 5/ 2018 (MS), a qual regulamentava a inserção do DIU pelo Enfermeiro no âmbito do SUS, e passando, assim, a não recomendar tal conduta.

Após manifestação do COREN e COFEN sobre o processo movido pelo CFM, a justiça reestabeleceu o direito de Enfermeiros e Enfermeiras realizarem a inserção e a retirada de DIU. O SindEnfermeiro DF foi admitido como amicus curie no processo judicial, possibilitando que o sindicato possa contribuir com informações que ampliem a percepção sobre importância desse direito para a categoria e para a sociedade.

A prática de inserção de DIU por enfermeiras e enfermeiros, apesar de ganhar maior notoriedade nos últimos anos, não é algo recente. Uma pesquisa publicada em 1995, a partir de dados coletados entre os anos de 1984 e 1986, na cidade do Rio de Janeiro, fez um comparativo entre as inserções realizadas por enfermeiros e por médicos, demonstrando que a efetividade no procedimento realizado pelas duas categorias profissionais é a mesma. Pesquisas como essa continuaram sendo apresentadas ao longo dos anos, sempre com resultados similares. Além disso, é recomendação da OMS que enfermeiros sejam treinados para ofertar o método em todo o mundo, como estratégia de expansão do acesso.

Isso deixa claro que a motivação dos constantes ataques à prática realizada por enfermeiros diz mais sobre reserva de mercado do que sobre competência técnica para a realização do procedimento, uma vez que, em razão da escassez da oferta do método na rede pública, muitas mulheres têm procurado clínicas privadas, pagando pela inserção e garantindo os lucros dos profissionais médicos do setor privado. Entretanto, esses ataques não ferem apenas a autonomia profissional da enfermagem, mas principalmente os direitos reprodutivos das mulheres, já que muitas mulheres não têm o acesso nos serviços públicos e não conseguem pagar um serviço privado.

Em um país em que mais da metade das gestações não são planejadas, os direitos reprodutivos devem ser tratados como política pública prioritária. O acesso a métodos de contracepção seguros e eficazes é também uma maneira de garantir a redução da mortalidade materna e infantil, que hoje apresentam números alarmantes no nosso país. Com a política do MS, no governo Bolsonaro, de desmonte da Rede Cegonha, referência na assistência à saúde das mulheres, de parturientes e de crianças, e a substituição pela Rami (Rede de Assistência Materna e Infantil), normatizando o incentivo à violência obstétrica e à assistência hospitalocêntrica e médico-centrada em detrimento da atenção multiprofissional em rede, a mortalidade materna aumentou – razão de 57/ 100 mil hab em 2019 para 107/ 100 mil hab em 2021 – , e a mortalidade infantil segue como desafio – o País registra anualmente 20 mil mortes evitáveis em crianças menores de 1 ano, como revela o Observatório de Saúde na Infância da Fiocruz/ Unifase.

Contraceptivos de longa duração, como o DIU de cobre, apresentam baixa taxa de falha, baixo custo para o SUS, porém ainda hoje tem seu acesso dificultado às mulheres de todo Brasil. Em contrapartida, se avaliarmos os dados de 2022, os enfermeiros foram responsáveis pela expansão do acesso ao método, tendo realizado 61% das inserções na região norte, 43% na região nordeste, e mais de um terço na região centro oeste. Especificamente no DF, conforme dados do SISAB, apenas em unidades básicas de saúde foram 1063 inserções por enfermeiros, o que corresponde a cerca de 30% dos procedimentos realizados no total. Esses números são relevantes se considerarmos que, por não haver protocolo institucionalizado para a prática na rede pública do DF, há ainda poucos profissionais capacitados. Uma vez que ocorra avanço nesse aspecto, poderemos garantir o acesso, impactando nas intermináveis filas e barreiras que as mulheres encontram na busca pelo método.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), ações como estas visam dar mais autonomia e respaldo a equipes multiprofissionais, através de programas estabelecidos por órgãos competentes, para ampliar as competências de cada profissão e fortalecer os sistemas de saúde dos países, democratizando também o acesso aos serviços.

Em um cenário permanente de ajuste fiscal, onde a Emenda Constitucional 95 (conhecida como teto de gastos) provoca um profundo desinvestimento no SUS, não são os Enfermeiros que são uma ameaça à vida da população. A ameaça à saúde dos usuários está na falta de medicamentos, na falta de vacinas, na falta de leitos de internação, na falta de profissionais, na falta de acesso à assistência e procedimentos, e não nas ações que estes profissionais desenvolvem nos serviços de saúde. Os profissionais da saúde são, inequivocamente, a solução dos problemas que o SUS enfrenta.

A manutenção de um enorme exército de reserva, a precarização do trabalho e a redução do salário médio do trabalhador em saúde levaram muitas categorias, ao longo dos anos, a entrarem em conflito por uma parcela do restrito mercado disponível para atuação. Não se pode achar que o Ato Médico, ao ser demasiadamente corporativo, impeça que outras categorias também entrem em conflito. Sabe-se que outras categorias da saúde já apresentam querelas inacabáveis sobre o campo de atuação de seus profissionais, e que isso ainda pode gerar muitas disputas por atos privativos.

Por isso, para se chegar à questão central em todo esse debate, suscita-se realizar, em primeira instância, a discussão sobre qual modelo assistencial os profissionais querem defender para a Saúde. E, hoje, colocar em pauta a autonomia de equipes multidisciplinares ao atendimento às necessidades humanas, é colocar em xeque todo um modelo assistencial voltado para suprir as necessidades de acumulação financeira.

A indústria farmacêutica e as grandes corporações da saúde sabem do risco de se assumir, no País, um modelo assistencial baseado na multidisciplinaridade e integralidade. Haveria, gradativamente, uma reorientação das práticas, e o ser humano, ao invés dos interesses financeiros, estaria em primeiro plano.

A indústria farmacêutica e as grandes corporações da saúde não querem uma mudança radical no modelo assistencial vigente, pois isso significa perder um negócio, em termos econômicos, bem lucrativo. Fortalecer um modelo centrado na figura do médico, permite um maior controle e uma maior garantia sobre a manutenção do fluxo de venda de medicamentos e de alta tecnologia para exames e cirurgias desnecessárias.
A quebra desse modelo, permitiria que todo o acúmulo científico gerado nos últimos anos com a consolidação de novas terapias alternativas para os agravos que afetam a saúde da população fosse utilizado para uma prática assistencial horizontal e não verticalizada, integral e não fragmentada entre as profissões da saúde.

O problema é que os avanços no campo científico se deram pari passu ao enraizamento das contradições sócio-econômicas no processo de trabalho em saúde, revelando a faceta mais oportunista das relações trabalhistas, que é a disputa interprofissional pelo mercado de trabalho. Portanto, é necessário que os profissionais da Saúde tenham um novo compromisso ético-político, que ultrapasse os limites impostos pela política econômica no campo da saúde e coloque em disputa um projeto para o SUS que considere o corpo socialmente investido e que adote uma estrutura econômica social que assegure políticas públicas essenciais para a população. Só assim será possível desenvolver uma prática multidisciplinar, com foco na população e livre dos interesses econômicos.

Por fim, faz-se necessária uma reflexão, junto aos Enfermeiros e Enfermeiras, sobre o surgimento de novas tecnologias que, assim como a prescrição de medicamentos, podem ser inseridas nos protocolos de atividades desenvolvidas por estes profissionais. Não são as práticas avançadas, e muito menos as novas tecnologias que pioram as condições de trabalho dos profissionais da Saúde. Estas, sim, servem para desencadear os processos produtivos na saúde, seja no âmbito da assistência, da vigilância, gestão e das políticas públicas em saúde, e a Enfermagem, pela importante localização no sistema de saúde, tem capacidade disruptiva na construção de ferramentas que podem democratizar o acesso da população à saúde.