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OPINIÃO: Qual o sentido histórico da exploração do trabalho de Enfermagem no Brasil?

Publicada em 20 de maio de 2020

Por Jorge Henrique

A ideologia da Enfermagem constituiu-se, ao longo dos últimos séculos, através da combinação de bases empíricas e científicas, ambas indissociáveis das relações que se estabelecem no processo produtivo e que regem o modo de vida na sociedade. Arvorou-se sobre os princípios de abnegação, obediência, disciplina e submissão, mediada, substancialmente, pela religiosidade, com uma linguagem sem sentido histórico e social, portanto, sem poder.

A repressão sistemática ao feminino antes e durante o Renascimento (séc. XVI),expressa, entre tantos outros obstáculos, pelo impedimento das mulheres de cursarem a universidade –local onde se processa a formação para a profissão médica -, consolidou sua prática de cura como marginal, obrigando-as a aplicarem seus conhecimentos e habilidades de forma clandestina nessa área.

Enquanto a prática médica desenvolveu seu conhecimento através de preceitos científicos, as representações coletivas das mulheres, portanto da Enfermagem, normatizam-se quase que exclusivamente por meio das práticas domésticas, mediadas pelo poder da Igreja e sem uma produção sistemática do saber, pelo menos até o século XIX, quando surgem as bases da Enfermagem moderna.

A prática de Enfermagem exercida nas santas casas que surgiram no Brasil, no século XVI, propunha-se ao atendimento de enfermos miseráveis, utilizando voluntários e escravos para realizarem os cuidados aos doentes, sem exigência de qualquer nível de escolarização, pois utilizava uma base puramente empírica. Além disso, era uma prática supervisionada e realizada pelos religiosos, o que muito influenciou sua ideologia até o surgimento das primeiras escolas no século XX.

Até o século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência ao pobre que, devido sua condição social, era um potencial doente e, como pária circulante, era um possível vetor de contágio, perigoso portanto. Por estas razões, o hospital tinha a incumbência de recolhê-lo para proteger os sãos do perigo que ele encarnava.Como lócus de isolamento social e não somente de tratamento de patologias, o hospital organizava as práticas curativas de ordem voluntária e caritativa.

A evolução científica do ensino médico designou o hospital moderno (séc. XIX) como local de prática diagnóstica e terapêutica, o que concedeu à profissão médica o status de prática autônoma. Por outro lado, no campo das práticas empíricas, a Enfermagem surge como atividade assalariada e submetida, no interior das relações de trabalho, à prática médica.

Essa divisão social do trabalho reproduziu, no âmbito mais geral,a divisão da sociedade em classes e determinou, na área da saúde, uma divisão técnica que fragmentou o trabalho em saúde em categorias com funções, habilidades, qualificações, remuneração e status extremamente diversificados.

O próprio surgimento da Enfermagem Moderna e a criação da Escola Nightingale por Florence, em Londres, institucionalizou a divisão social do trabalho de Enfermagem, com as Nurses, oriundas de famílias pobres e que realizavam o trabalho direto ao cuidado, e as Ladies-Nurses, de famílias ricas e que realizavam as atividades de supervisão, administração e ensino. Dessa forma, a Enfermagem reproduziu a divisão entre o trabalho intelectual (médico) e o trabalho manual (enfermagem), estratificado também em função da complexidade das tarefas a serem realizadas, da qualificação exigida, da hierarquia e da remuneração, no interior da profissão.

No Brasil, as primeiras escolas de Enfermagem surgiram no final do século XIX, sob coordenação e orientação do corpo docente médico, pois as irmãs de caridade que eram responsáveis pelas práticas de Enfermagem, ou seja, ainda não existia, naquela época, um ensino sistematizado da profissão, situação que perduraria até as duas primeiras décadas do século XX.

A primeira escola de enfermagem do Brasil, sob a responsabilidade exclusiva de enfermeiras, surge somente em 1923, com a criação da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), atual Escola de Enfermagem Anna Nery, no Rio de Janeiro.A escola foi, inicialmente, financiada pela Fundação Rockfeller e coordenada por Enfermeiras norte-americanas, formadas pelo sistema Nightingale.

Sob forte influência do modelo americano, sistematizado em trabalho intelectual e manual, o trabalho de enfermagem, impactado pela formação da Escola Anna Nery, nasceu arraigado aos preceitos de hierarquia.As enfermeiras com diploma e pertencentes a uma classe social alta, assumiam as chefias dos serviços de saúde pública ou a docência, e preparavam auxiliares, chamadas de visitadoras sanitárias, para o trabalho direto com a comunidade.

Nesse período, a sociedade brasileira tinha como sustentáculo, tanto no plano sócio-político quanto no econômico, o setor agrário-exportador cafeeiro e, por isso, a enfermagem moderna brasileira surgiu sobre a égide da saúde pública, forjada no combate à febre amarela e no saneamento dos portos. Destacam-se, no currículo desse período, as disciplinas de cunho preventivo, compatíveis com a realidade.

A partir da década de 1930, a economia brasileira esboçou as primeiras tentativas de industrialização, enquanto a prática sanitária na saúde começou a entrar em declínio.  A medicina positivista, flexneriana, baseada no indivíduo ao invés das coletividades humanas é que influenciaria o processo de trabalho em saúde, seguindo as exigências da sociedade industrial, que elege o hospital como ambiente hegemônico para a prática médica e para a acumulação de capital.

Na década de 1940, com o desenvolvimento urbano-industrial, cresce o número de hospitais e a divisão no trabalho na enfermagem sofistica-se na medida em que as especialidades médicas exigem uma maior complexidade técnica, o que contribui para a manutenção da hierarquia social dentro do ambiente hospitalar, mas agora com o surgimento do auxiliar de Enfermagem para cumprir as competências manuais.

Essa divisão no interior da Enfermagem encontra, na fragmentação das competências, na diferenciação salarial e na hierarquia, os mecanismos de reprodução da submissão da Enfermeira à prática médica, acirrando os conflitos, ora identificados como problemas pessoais, e impedindo a própria organização sindical da Enfermagem.Além disso, a percepção errônea do Enfermeiro sobre seu status dominante de gerenciador tem blindado o problema político da divisão técnica e social do trabalho de Enfermagem e o tem jogado, cada vez mais, na condição de assalariado, sem nenhuma recompensa para as suas aspirações de classe.

Esse paradigma racional curativo, que elege o hospital e as clínicas especializadas como lócus de atuação e que perdura até os dias de hoje, utiliza um modelo teórico-prático que possibilita um avanço da alta tecnologia em saúde sem, no entanto, optar por modelos que considerem os problemas básicos de saúde da população. É um paradigma que estabelece relações, no processo produtivo, que servem para a reprodução e acumulação de capital, dadas as exigências da sociedade industrial e mercantilista que tem a assistência médica hospitalar como um serviço pelo qual os indivíduos terão que pagar para ter acesso.

Como forma de superar esse paradigma, as lutas pela redemocratização do País, nos anos 1970 e 1980, apontaram para um modelo de saúde democrático, oposto ao modelo excludente praticado no período da ditadura, e que pudesse reorientar as práticas em saúde. Foi a partir dessas lutas que o Sistema Único de Saúde(SUS) surgiu, na década de 1980, possibilitando à população acesso aos serviços de saúde e maior autonomia das profissões no seio das relações de trabalho.

No SUS, a Enfermagem desenvolve programas e políticas de saúde, como o Programa Nacional de Imunização, desenvolve ações de vigilância sanitária, a Estratégia Saúde da Família e pesquisas, é peça fundamental no SAMU, além de prestar assistência na Atenção Primária em Saúde e nos hospitais, ou seja, o SUS é responsável por empregar boa parte dos mais de 2 milhões de profissionais da Enfermagem no Brasil.

Infelizmente, a disputa feita pelo modelo hegemônico mercantilista na saúde, desde a década de 1990, impôs o limite de gastos públicos (despesa de pessoal e investimento em serviços no SUS), a flexibilização de leis trabalhistas, terceirizações e privatizações, com consequente queda da média salarial dos trabalhadores da saúde e aumento do desemprego.

A redução de investimentos na saúde, como acontece com a Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos os investimentos em saúde e é acompanhada pela redução de concursos públicos, pelas terceirizações e privatizações, tem aumentado a produtividade, assim como tem alterado o perfil de morbi-mortalidade dos profissionais.

A taxa de acidentes de trabalho, no ano de 2018, foi 34% maior na área da saúde, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OUT). Dados do Ministério Público do Trabalho do mesmo ano mostraram que o Brasil é o 4° País no ranking de acidentes de trabalho e a Enfermagem é a segunda categoria que mais sofre com esse tipo de acidentes.  Por isso, essa realidade tem gerado restrições físicas e psíquicas, que se caracterizam em processos crônicos de dor e perda de força muscular, ansiedade, depressão, e tem impactado negativamente nos processos de trabalho e na qualidade da assistência ao paciente.

Nesse momento de pandemia, as mortes de profissionais da saúde desnudam as condições aviltantes impostas, historicamente, aos profissionais da Enfermagem. Porém, as questões sociais no processo de trabalho em saúde não podem ser vistas como mais um componente na lista das possíveis causas de doenças, assim como também não podem ser vistas, corporativamente, como uma pretensa falta de valorização sem sentido estrutural dos determinantes que a modelam.

É importante e legítimo que a Enfermagem se levante para lutar pelas 30 horas e pelo piso salarial, pois quando trabalhadores saem em luta, ganham confiança em si mesmos e tiram conclusões sobre as contradições do processo de exploração. Também é preciso, contudo, que as trabalhadoras da Enfermagem reconheçam referências e iniciativas transformadoras que recuperem a ação e os objetivos coletivos, recriados pelo sujeito social, e que coloquem o fortalecimento do SUS no centro da disputa e supere, ainda, os interesses econômicos na saúde.

Isso significa que a Enfermagem deve lutar lado a lado contra as políticas de Bolsonaro, que negam a pandemia, fazem milhares de vítimas da Covid-19, retiram mais direitos dos trabalhadores e mais verbas da saúde pública para fortalecer o sistema financeiro, pois só haverá valorização da Enfermagem se existir o SUS.