Lígia Maria*
Internacionalmente, o mês de março marca a história da luta pelos direitos das mulheres, abrangendo a diversidade de movimentos, bandeiras e pautas que visam à transformação da realidade de iniquidades de gênero, permeadas por questões de raça, classe e sexualidade, as quais marcam a trajetória social, cultural e política das mulheres em todo o mundo. Nesse contexto, as situações de violência contra as mulheres são objeto de atenção e mobilização dos movimentos sociais.
Em todo o Brasil, vive-se uma escalada de violência contra a mulher. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que, diariamente, 673 mulheres vão a uma delegacia registrar um episódio de violência doméstica; os acionamentos à Polícia Militar e ao 190 chegam à média de 102 por hora, e houve aumento da violência letal contra mulheres. A maior taxa foi verificada na Região Centro-Oeste, com 2,0 casos para cada 100 mil mulheres, sendo que o estado da federação com maior crescimento foi o Distrito Federal, contabilizando 59,4% das mortes violentas femininas classificadas no tipo penal específico (FBSP, 2023).
Outro tipo de violência em vertiginoso crescimento é a violência sexual. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 revela o maior número de registros de estupro e estupro de vulnerável da história: os casos de estupro somaram 18.110 vítimas em 2022, crescimento de 7% em relação ao ano anterior; já os casos de estupro de vulnerável, com um total de 56.820 vítimas, tiveram incremento de 8,6% – totalizando 74.930 vítimas (FBSP, 2023). No Distrito Federal, dados do Núcleo de Estudos, Prevenção e Atenção às Violências – NEPAV evidenciam que, em 2023, foram notificados 1.374 casos de violência sexual nos dois primeiros quadrimestres do ano, sendo 1.066 estupros e, destes, 515 cometidos contra crianças e adolescentes do sexo feminino. O estupro foi o tipo de violência mais frequente entre os casos notificados (GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL, 2023).
Uma das graves consequências da violência sexual pode ser a gestação, além dos efeitos biopsicossociais à pessoa sobrevivente. O Instituto Brasileiro de Pesquisa Aplicada estima que entre 5% e 7% das violências sexuais podem resultar em gestação (IPEA, 2014), constituindo uma das questões de saúde mais delicadas, que implicam sensibilidade e assertividade no encaminhamento ao serviço de referência adequado. Vale ressaltar que o Brasil está em 4º lugar no mundo no ranking de casamento infantil e tem índices inaceitáveis de gravidez precoce (FBSP, 2023). De acordo o Ministério da Saúde, são mais de 19 mil nascidos vivos por ano de mães com idade entre 10 a 14 anos; entre 2010 e 2019, 252.786 meninas de até 14 anos deram à luz no Brasil, ou seja, um parto a cada 20 minutos (BRASIL, 2022). No DF, somente em 2023 foi mais de 70 partos de nascidos vivos de parturientes nesta faixa etária – ou seja, quase uma centena de partos decorrentes de violências sexuais (SES DF, 2023).
A epidemiologia da violência contra a mulher sensibiliza, especialmente, a categoria de enfermagem, que tem como objeto de trabalho o cuidado e acumula identificação subjetiva com a opressão de gênero, por ser uma categoria majoritariamente feminina. Para além disso, o perfil das vítimas de violência também toca a enfermagem: são mulheres negras, vulnerabilizadas e moradoras das periferias. Quando se trata das situações de gestação decorrentes de violência, as pessoas mais prejudicadas são as jovens, negras, moradoras de áreas rurais ou periferias urbanas – onde a enfermagem atua precipuamente na promoção da saúde e prevenção de doenças.
São as enfermeiras que atuam na elaboração, gestão e execução das políticas públicas. No tocante àquelas voltadas ao cuidado das mulheres em situação de violência não é diferente, sobretudo no Distrito Federal. A capital do País conta com a recém instituída Rede de Atenção às pessoas em situação de Violência (RAV), pioneira no Brasil e construída de forma interprofissional, integrando profissionais de enfermagem que atuam em diversos dispositivos da rede de saúde para a atenção às pessoas em situação de violência.
São as enfermeiras e técnicas de enfermagem que estão na linha de frente do cuidado às mulheres em situação de violência: coordenam o Núcleo de Estudos, Prevenção e Assistência às pessoas em situação de Violência (NEPAV), comprometidas com a epidemiologia crítica do panorama da violência para a elaboração assertiva das políticas públicas; gerem os Núcleos de Proteção e Assistência às pessoas em situação de Violência (NUPAV), articulando a gestão e a assistência nos territórios, através da atuação nos Centros Especializados de Proteção e Assistência às pessoas em situação de Violência (CEPAV); assistem vítimas de violência sexual que convivem com a revitimização e perpetuação da violência na qual consiste uma gestação decorrente deste crime, inseridas no Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL).
É nesta extensa rede onde a enfermagem trabalha sob a perspectiva do cuidado centrado na pessoa, com qualidade técnica e científica, praticando a autonomia profissional com vistas ao acolhimento, atendimento, notificação e seguimento em rede de centenas de sobreviventes dos mais diversos tipos de violência que buscam os serviços de saúde. Ainda que, do outro lado, essa mesma violência de gênero acometa as profissionais de enfermagem com expressões de violência física, psicológica e institucional; assédio moral e sexual; exploração laboral com extenuantes jornadas de trabalho, a enfermagem está dedicada a uma atuação assertiva em prol da quebra dos ciclos de violência, sob o cuidado multiprofissional em colaboração com outras categorias da saúde, no sentido da proteção das mulheres do DF.
Especificamente sobre a atuação nos casos de gestação decorrente de violência sexual, a enfermagem se depara, sobretudo, com a violência institucional, caracterizada por contradições éticas e normativas técnicas e legais específicas da profissão que impõem os obstáculos e fragilidades à enfermagem atuante nos serviços de referência, não obstante também existam normas que potencializam sua atuação no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. A enfermagem conta com profissionais de referência envolvidas na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e em espaços nacionais e internacionais relacionados ao tema, que precisam ser cada vez mais visibilizadas para a própria categoria e podem colaborar como pilares de formação política e técnica da enfermagem nesse âmbito de atuação.
O aborto é um evento comum na vida reprodutiva das pessoas capazes de gestar. Sendo uma questão de saúde pública, assim como ocorre na vida de quem aborta, em algum momento também surgirá no cotidiano do trabalho de profissionais de saúde – sobretudo da enfermagem. Trocar a compreensão do aborto enquanto um tabu pelo entendimento deste evento reprodutivo como objeto de estudo, aprimoramento e construção de políticas públicas é responsabilidade de todo profissional de saúde que encara com seriedade o compromisso do cuidado científico, humanizado e equitativo.
As barreiras de acesso à assistência, a criminalização e a penalização social prejudicam todas as pessoas em situação de violência e abortamento, com ênfase nas mulheres jovens, negras e periféricas. Não por coincidência, é esse mesmo perfil sociodemográfico que constitui a enfermagem brasileira, o que deve impelir a categoria à discussão sobre a pauta sob um ponto de vista socialmente referenciado, livre de julgamentos fundados em crenças e valores morais pessoais.
É necessário pautar, debater, ampliar e inserir na formação em saúde as competências, habilidades e atitudes da enfermagem brasileira diante do cuidado às pessoas em situação de violência e dos direitos sexuais e reprodutivos. A profissão do cuidado deve estar incumbida da transformação dos paradigmas históricos, sociais, culturais e políticos que estruturam seu perfil e, assim, atuar com vista à concretização de um papel crítico e equitativo da enfermagem no âmbito da garantia do cuidado nas situações de violência e do acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o abortamento.
Por isso, o Sindicato dos Enfermeiros compõe, desde 2018, as marchas unificadas do 8 de março e convida as enfermeiras para construir o Setorial de Mulheres, em uma colaboração ampla entre enfermeiras que pensam as políticas públicas no sentido da equidade, sobretudo a de gênero, da proteção das mulheres e da valorização da atuação da enfermagem em políticas públicas que têm o potencial de transformar a realidade social. Enfermeiras pela vida de todas as mulheres!
*Lígia Maria é enfermeira egressa da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), mestre em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília (UnB) e servidora da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES DF), atuando no Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) e compondo o Grupo Condutor Distrital da Rede de Atenção às pessoas em situação de Violência (GCD- RAV).
REFERÊNCIAS
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Cerqueira D, Coelho DSC. IPEA. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf.
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FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 23 nov. 2023.
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