Não há como falar de saúde mental sem compreender profundamente os componentes estruturantes de nossa sociedade. E falar sobre os desafios do cuidado em liberdade é reconhecer que existe um projeto político de medicalização e manicomialização da pobreza.
Questionar a medicalização da vida é entender que a população com sofrimento mental e/ou necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas é diversa e apresenta vulnerabilidades que se cruzam e se interpõem, tornando uns muito mais vulneráveis que outros.
Ao falar de cuidado em liberdade, é necessário se debruçar profundamente nos recortes de cor, gênero e classe social. Rever não somente os muros do manicômio, mas também as diversas ordens de violência fora dele – a exploração no trabalho, os baixos salários, o desemprego, as assimetrias de acesso às políticas públicas, o encarceramento da população preta e pobre, a insegurança alimentar, a fome e a miséria.
É preciso entender também que a indústria farmacêutica lucra com a pobreza e lucra mais ainda com a loucura. Ou seja, o adoecimento das pessoas é de seu interesse.
O fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial se faz urgente, e deve ser articulada à consolidação de políticas de geração de emprego e renda, ampliação de creches e escolas de tempo integral, qualificação das equipes para superação das diversas ordens de discriminação, racismo, misoginia, LGBTQIAP+fobia e outras violências institucionais.
O cuidado em liberdade depende do fim dos manicômios, mas é importante que essas pessoas possam encontrar lá fora um espaço comunitário mais justo e com maior qualidade de vida.
Uma sociedade que cuida em liberdade é uma sociedade que garante direitos, representatividade e diversidade. Fazer uma revisão da política de saúde mental é pagar uma dívida histórica com aqueles que são a razão de existir dos serviços.
A democracia é antimanicomial.
Andressa de França Alves Ferrari é enfermeira da Secretaria de Saúde do DF, especialista em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, Mestra em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília, coordenadora do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Adulto e do Curso de Especialização em Saúde Mental na Atenção Psicossocial da FEPECS, turma de 2022. Também é integrante do Movimento Pró-Saúde Mental do DF.