Durante o mês de março, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, o SindEnfermeiro-DF vai contar as histórias de enfermeiras que fazem a diferença na saúde do Distrito Federal e do Brasil, como forma de agradecimento à sua dedicação e amor à profissão.
E a história que será contada nesse texto tem início na pequena cidade de São José da Lagoa Tapada, no alto sertão paraibano. A protagonista atende por Maria Fátima de Sousa ou, para os alunos que passaram pelas suas salas de aula, Profª Fátima Sousa, 60, enfermeira sanitarista, professora da Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora e militante em defesa da saúde pública e do SUS há mais de 30 anos.
Fátima se formou em enfermagem pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 1986, e fez mestrado em Ciências Sociais também na UFPB – onde carrega o título de Doutora honoris causa. Além disso, é doutora em Ciências da Saúde pela UnB com pós-doutorado na Université du Québec à Montréal, e em 2013 foi condecorada com a Medalha do Mérito Oswaldo Cruz por seus relevantes serviços à saúde brasileira.
Desde o início de sua trajetória, contribuiu de forma ativa para o fortalecimento do Sistema Único, tendo sido a responsável por implantar o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) na Paraíba, em 1991 – expandido depois para todo o território nacional em seu período como Gerente Nacional do PACS no Ministério da Saúde (1994-2002).
O PACS veio a ser incorporado à Estratégia de Saúde da Família (ESF) como parte da descentralização de recursos e ações do SUS, e representou um grande passo no fortalecimento da Atenção Primária como estratégia prioritária de saúde pública.
Como professora, foi diretora da Faculdade de Saúde da UnB entre 2014 e 2018, e responsável por elaborar o projeto que classificou a universidade como Promotora de Saúde – o que permitiu à instituição promover ações de valorização da saúde e bem estar da comunidade acadêmica.
Já no campo político, atuou durante a década de 1980 em movimentos sociais ligados às comunidades de base, com vinculação às pastorais de justiça, saúde e paz, e militou no Partido dos Trabalhadores (PT) até o ano de 2003. Em 2018 se lançou como candidata ao governo do Distrito Federal pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), tendo recebido 4% das intenções de voto – cerca de 60 mil.
Em entrevista para o SindEnfermeiro, Fátima falou sobre os principais momentos de sua trajetória, passando pela graduação em enfermagem, as primeiras lutas em defesa da saúde, e alguns dos principais trabalhos desenvolvidos por ela durante sua carreira.
Pergunta: Quando surgiu o seu interesse pela área da saúde – e pela enfermagem?
Resposta: Desde muito jovem, desejava ser Enfermeira. Durante o percurso de minha formação acadêmica na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), entrei no movimento estudantil e nos coletivos que defendiam o Projeto da Reforma Sanitária Brasileira (PRSB). Sigo nesse caminho até os dias atuais.
P: Na década de 1980, ainda como estudante de enfermagem, você trabalhou no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, na Paraíba – dirigida pela histórica líder sindical Margarida Alves. Como foi o desafio de trabalhar, logo no início da sua carreira profissional, com a redução da mortalidade infantil no campo em meio a um período de constantes conflitos latifundiários no Brasil?
R: Participei do Projeto da Redução da Mortalidade Infantil, uma tarefa que me fez ver a precarização do mundo do trabalho rural e as lutas pelo fim da mecanização e da informalidade de contratação, cuja duração estava relacionada ao período de plantio ou de colheita, terminando a relação de emprego ao fim da safra. Depois de formada, como Residente da Medicina Preventiva e Social, fiz meu estágio no município de Caaporã, no sindicato rural da cidade, apoiando a formação de mulheres “Agentes de Saúde” para o mesmo projeto de Redução da Mortalidade Infantil. Tanto em Alagoa Grande, como em Caaporã, cidades de latifundiários da cana de açúcar, os conflitos entre eles (donos de terras) e os boias-frias eram muito intensos.
P: Durante seu período no MS, nos anos 90, você foi uma das responsáveis por coordenar a mudança de prioridade do SUS para a atenção primária. Como você analisa a evolução da atenção primária no Brasil de lá pra cá? E o que ainda pode ser melhorado?
R: Coordenei a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), em 1991, desde a Paraíba, o estado Piloto para o Brasil, em companhia de outras(os) enfermeiras(os). O programa antecedeu o desenho da Estratégia Saúde da Família (ESF) em 1994, e ambas as estratégias objetivavam ser a base estruturante da Atenção Básica à Saúde (ABS). Durante mais de três décadas muitos foram os avanços: organizamos a rede básica de saúde, hoje são 42.488 UBS; ampliamos o acesso desde a zona rural, periferias das cidades e grandes centros; reduzimos a mortalidade materna e infantil; controlamos muitos agravos; capacitamos mais de 43.369 mil equipes da ESF, e mais de 350 mil Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias, só para citar algumas ações. São avanços que vem contribuindo ao fortalecimento do SUS e seu reconhecimento dentro e fora do país. Entretanto, nos últimos governos, os direitos que pensávamos estar garantidos vêm sendo desfigurados, sobretudo, no financiamento da APS. Por isso, devemos seguir defendendo que APS é o caminho ao fortalecimento da Rede Integrada de Atenção à Saúde em Sistema Universal.
P: Em 2018, você foi uma das postulantes ao Buriti, e obteve uma votação expressiva mesmo disputando com figuras conhecidas da política brasiliense e campanhas com bem mais recursos financeiros. Porém, a sua candidatura foi uma exceção – visto que o número de pessoas que representam a área da Saúde e se candidatam a cargos eletivos ainda é muito baixo. Pra você, o que é preciso para incentivar mais representantes da Saúde a adentrar nos espaços de poder?
R: Primeiro, é preciso romper com a cultura instituída de que a política não é lugar para as mulheres. Segundo, vencer as barreiras do baixo apoio financeiro, midiático e dos partidos tradicionais, que veem nas candidaturas das mulheres o mero cumprimento de cotas. E não menos importante: as mulheres necessitam compreender que devemos superar as desigualdades de gênero, juntando coragem para erguer a cabeça e os punhos, ainda que dê de cara com obstáculo atrás de obstáculo. Para recordar, as mulheres têm, em geral, menos tempo livre para a prática política em si – a dupla jornada feminina, afinal, segue como o padrão. Precisamos, sim, nos apresentar para constituir bancadas dos direitos humanos, da educação e da saúde, entre outras agendas à construção de outro modo de organização para termos uma sociedade democrática e livre. Uma bancada forte da Enfermagem e da saúde faz falta no parlamento e no poder Executivo.
P: Por fim, qual a sensação de poder ter contribuído tanto para o fortalecimento da saúde pública no Brasil em sua trajetória? O que ainda falta para o SUS cumprir de fato a sua missão institucional?
R: Sigo na defesa incondicional do SUS e da educação. Como professora, venho cumprindo meu dever de cidadã em contribuir para que tenhamos um Estado forte e capaz de responder às principais demandas da sociedade, podendo assim ter uma vida digna e saudável. Apesar dos avanços do SUS, hoje mais que nunca, nessa pandemia, torna-se evidente sua relevância social e sanitária, embora muitos sejam os desafios, entre eles: um financiamento estável e sustentável; o modelo de atenção à saúde, tendo na APS, seu eixo organizativo; pactos federativos a sua governança; fortalecimento do controle social; e principalmente, a formação de uma “consciência sanitária” na população.